STJ Garante Permanência de Militares Trans: Um Marco Contra a Transfobia Institucional nas Forças Armadas

 

1. Uma Decisão Histórica em Tempos de Retrocesso


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Em um cenário político marcado pela escalada conservadora e por constantes ataques aos direitos da população LGBTQIA+, a recente decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça (STJ) surge como um ato de resistência institucional e uma vitória civilizatória. A Primeira Seção da Corte foi categórica: as Forças Armadas brasileiras (Exército, Marinha e Aeronáutica) estão proibidas de afastar militares de suas funções, seja por reforma compulsória ou exclusão, unicamente por serem pessoas transgêneras ou por estarem em processo de transição de gênero.

Esta não é apenas uma decisão judicial; é uma declaração de dignidade. Em um país onde a farda sempre simbolizou o poder masculino e a ordem cisgênera, o STJ lança uma luz sobre um dos ambientes mais hostis à diversidade, forçando uma reflexão profunda sobre o conceito de "aptidão" e "honra" na vida pública.


2. O Caso em Questão: O Que Foi Decidido e Por Quê

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A decisão do STJ, proferida no julgamento de um Incidente de Assunção de Competência (IAC) – o que lhe confere repercussão nacional e obriga as instâncias inferiores a seguirem o mesmo entendimento – atendeu a uma ação da Defensoria Pública da União (DPU). A DPU representava militares que foram obrigados a tirar licenças médicas ou até mesmo foram compulsoriamente aposentados (reformados) devido à sua identidade de gênero.

O cerne da decisão é a reafirmação de um princípio constitucional:

A condição de pessoa transgênero ou o processo de transição de gênero não configuram, por si sós, incapacidade ou doença para fins de serviço militar.

O relator do caso, Ministro Teodoro da Silva Santos, consolidou o entendimento de que qualquer afastamento ou exclusão por este motivo é uma forma de discriminação vedada pela Constituição Federal (Art. 5º, caput e inciso XLI), que assegura a dignidade da pessoa humana e o direito à não discriminação. Além disso, o Tribunal garantiu o direito ao uso do nome social e à atualização de registros internos, um passo crucial para o reconhecimento e o respeito dentro da caserna. A decisão rejeita o argumento da União de que o ingresso nas Forças Armadas exige "condições de gênero fixas", mostrando que a dignidade humana não se submete a rigidez burocrática discriminatória.


3. Transfobia Institucional e o Imaginário Militar Brasileiro

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As Forças Armadas no Brasil, assim como em grande parte do mundo, foram historicamente construídas sobre uma base de masculinidade normativa, virilidade e cisheteronormatividade. A estrutura militar se alimenta de um imaginário social que associa a “disciplina” e o “patriotismo” a corpos e comportamentos rígidos e pré-determinados.

Nesse contexto, a pessoa trans — cuja própria existência desafia a binariedade e a rigidez de gênero — é sistematicamente vista como um “corpo dissidente”, uma “ameaça” à hierarquia ou, pior, como “inadequada” para o serviço. Esta não é uma falha individual, mas sim um reflexo da transfobia institucionalizada, onde as normas, procedimentos e a cultura interna da organização se tornam instrumentos de exclusão e violência.

O impacto dessa decisão é, portanto, o de rachar o imaginário social sobre quem pode ou não ser “apto” para servir. Ao declarar que ser trans não é uma patologia nem um impedimento, o STJ obriga o aparato militar a confrontar sua própria rigidez e preconceito estrutural.


4. O Peso Simbólico e Político da Decisão

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O veredito do STJ não se limita a proteger o emprego de alguns militares. Ele envia um recado político e simbólico de vastas proporções a toda a sociedade brasileira, em especial às instituições mais conservadoras: ser trans não é uma patologia, nem uma ameaça à ordem pública.

A decisão colabora ativamente para a despatologização e desestigmatização das identidades trans no serviço público. Se até mesmo o ambiente militar, reconhecido pela sua rigidez, pode ser obrigado a integrar e respeitar a diversidade, o que resta como justificativa para a exclusão em escolas, empresas e órgãos governamentais menos rígidos?

É uma analogia poderosa: a inclusão nas Forças Armadas demonstra que o respeito à identidade de gênero não é uma concessão, mas uma obrigação legal e ética, fundamental para um país que se pretende democrático e signatário de tratados de direitos humanos.


5. Representatividade, Visibilidade e Resistência

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A presença e a permanência de militares trans nas Forças Armadas possui um valor simbólico imenso. É um ato de resistência materializado na ocupação de espaços historicamente negados e violadores.

A representatividade não é apenas sobre ver; é sobre existir com dignidade. Para um(a) jovem trans que sonha em servir ao país ou que já está na carreira militar, saber que a lei está ao seu lado e que sua identidade não pode ser a causa de sua exclusão gera um impacto psicológico e social positivo incalculável. A farda, agora, começa a se desassociar da exclusão e se reaproxima do ideal de servir à totalidade da nação.


6. A Luta Está Longe de Acabar



Apesar da monumental vitória jurídica, é fundamental manter o olhar crítico e a vigilância. A decisão do STJ é a lei na teoria, mas a realidade interna das instituições militares é o campo de batalha do cotidiano.

A transfobia do dia a dia — o assédio, a exclusão nos vestiários, o uso incorreto dos pronomes, a perseguição por superiores e pares, e a negação de direitos simples, especialmente quando o militar decide fazer a transição em serviço — continua a ser uma ameaça real.

É urgente que a decisão do STJ seja acompanhada de políticas internas efetivas de acolhimento, treinamento de diversidade obrigatório para toda a cadeia de comando, e canais de denúncia transparentes e punitivos para o assédio. A lei garante a permanência, mas a cultura deve garantir a dignidade.


7. Um Passo à Frente, Mil Barreiras a Derrubar

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A decisão do Superior Tribunal de Justiça é um divisor de águas na jurisprudência brasileira e um alento para a luta LGBTQIA+. Ela reafirma que os direitos humanos e a dignidade estão acima de qualquer regulamento militar arcaico ou preconceito enraizado.

É uma vitória que demonstra a importância do Judiciário como baluarte contra os retrocessos. No entanto, é também um lembrete crucial: direitos não são dados, são conquistados e só se mantêm com vigilância e mobilização constante. A luta das pessoas trans no Brasil não é por “aceitação”, mas pela igualdade real — a capacidade de existir e prosperar em qualquer espaço da sociedade, sem que a própria identidade seja um risco.

O STJ fez sua parte ao garantir o direito de existir na farda. Agora, a sociedade e, principalmente, as Forças Armadas, precisam fazer a sua parte para garantir o direito de existir com humanidade.


Nenhum uniforme é neutro quando quem o veste carrega o peso de existir. O que o STJ reconheceu não foi apenas um direito, foi uma humanidade que o Brasil insiste em negar.

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