RJ em Guerra: O que a megaoperação matou — e por que o problema permanece

 A Falência do Modelo de Poder


Imagem de Agência Brasil - EBC

Mais uma vez, o céu do Rio de Janeiro rasgou-se com o som de helicópteros blindados e o barulho seco dos tiros de fuzil. A megaoperação de 28 de outubro de 2025 nas favelas do Complexo do Alemão e da Penha foi vendida como a resposta definitiva do Estado ao “caos armado” e à expansão do Comando Vermelho (CV). O saldo, segundo balanços oficiais, até o momento dessa postagem, foi de 64 mortos — 60 suspeitos e 4 policiais —, tornando-a a ação mais letal da história do estado, superando em mais que o dobro o massacre do Jacarezinho de 2021.

Bairros inteiros ficaram paralisados, com 150 escolas fechadas, atendimento médico suspenso e o terror imposto sobre moradorxs. A tese desta reportagem é brutal e inequívoca: Não é guerra — é a falência do modelo de poder. O “caos armado” não é um acidente; é o resultado previsível da confluência entre violência organizada, interesses imobiliários e econômicos, e uma política de segurança que prefere o espetáculo militarizado à estratégia social e de inteligência. A megaoperação mais letal da história recente não desarmou o crime; ela apenas reproduziu a tragédia.

 A Semente da Dupla Violência

Imagem de Agência Brasil - EBC


Para entender o banho de sangue de 2025, é preciso voltar no tempo. A violência do Rio nunca foi um monólito. A partir dos anos 1980, enquanto o Comando Vermelho consolidava o tráfico, outro ator, mais sofisticado e com tentáculos no Estado, emergia: as milícias.

Nascidas sob o discurso falacioso de "autodefesa" e formadas por ex-agentes de segurança pública (policiais, bombeiros), as milícias se transformaram rapidamente em máfias. Sua diferença crucial é que elas não vivem apenas do tráfico de drogas, mas de uma sofisticada economia paralela que toca em todos os aspectos da vida periférica: extorsão, venda de gás, TV a cabo clandestina ("gatonet"), transporte alternativo e, o mais perigoso, o controle do mercado imobiliário ilegal.

Conforme apontam os estudos da Fundação Heinrich Böll e do GENI/UFF, o crime organizado no Rio tem, há décadas, um pé no fuzil e outro na máquina pública. A milícia representa o casamento perverso entre o controle territorial e a legitimidade institucional, sendo a principal responsável pela grilagem de terras e a construção ilegal em áreas de moradia de baixa renda.

Quem Lucra com o Poder Paralelo? A Teia Político-Econômica


Imagem de O Globo

A violência letal é apenas a ponta do iceberg. O que sustenta o poder miliciano e de facções como o CV é a relação direta e profunda com a economia formal e a política. O caos só existe porque alguém está lucrando.

Pesquisas indicam que, em comparação com outras facções, as milícias estão presentes em territórios onde a atividade imobiliária é mais intensa e o enfrentamento armado com o Estado é historicamente reduzido. A impunidade e o consentimento tácito permitem que estes grupos ignorem a fiscalização, grilhem terras e levantem edifícios.

O lucro se concentra em três eixos:

Imagem de Rádio Guaçu


1. Imobiliário Ilegal: Construção e venda de imóveis sem licença em áreas valorizadas, gerando bilhões de reais em riqueza sem passar por regulação municipal.

2. Monopólio de Serviços: Contratos de serviços públicos (como o de transporte alternativo, gás ou TV) são direcionados para empresas-laranja ligadas a agentes políticos e milicianos, extorquindo a população com preços abusivos.

3. Proteção e Conivência Política: Políticos locais — especialmente aqueles com discurso de extrema-direita que legitima o braço paramilitar — se beneficiam por meio de votos controlados e financiamento de campanha com dinheiro sujo. O poder armado garante a lealdade do eleitorado.

Este dossiê investigativo deve ir além dos criminosos na ponta do morro. É preciso mapear contratos, rastrear papelarias e laranjas, e expor os nomes dos empresários e agentes públicos que se beneficiam dessa "governança paralela".

A Megaoperação: Uma Cronologia de Terror e Fracasso

Imagem de Conectas Direitos Humanos


A megaoperação de outubro de 2025, envolvendo 2.500 policiais, blindados e helicópteros, foi uma tentativa de "retomada" nos Complexos do Alemão e da Penha. O objetivo, segundo o governo, era desarticular o CV e conter sua expansão.

A realidade, porém, foi outra. O alto número de mortes de "suspeitos" e a letalidade mais que recorde acendem um sinal vermelho para os Direitos Humanos.

Impacto Cívico Imediato:
• Vias Paralisadas: Em retaliação, o crime organizado utilizou táticas de terror, como o uso de ônibus-barricada e bloqueios em vias expressas, paralisando a Linha Amarela e a Avenida Brasil.

• Serviços Interrompidos: Escolas e postos de saúde foram fechados, afetando mais de 29 mil alunos e milhares de famílias.

• Armamento Pesado: A troca de tiros envolveu armamento de guerra e o uso de drones por parte dos criminosos, mostrando o grau de escalada do conflito.

Por Que a Força Bruta Falhou?

Imagem de CNN Brasil


A megaoperação fracassou em seu objetivo estratégico, apesar do número recorde de mortes e prisões, porque ela não atacou a raiz do problema: a estrutura política e financeira do crime. Especialistas e pesquisadores críticos da militarização (GENI/UFF, Igarapé) apontam:


1- Foco no Efeito Espetáculo: A prioridade foi a visibilidade midiática e a ação punitiva de confronto, não a inteligência social e financeira. A maioria das prisões foi de indivíduos na ponta da hierarquia, enquanto líderes, avisados por vazamentos, conseguiram escapar.

2- Vazamento e Conivência: A eficácia é minada pela infiltração e pela corrupção. Como argumentam analistas, "o Rio já mostrou que não tem capacidade de enfrentar isso sozinho. Estamos falando de um estado com instituições e poderes com infiltração."

3- Ausência de Estratégia Pós-Op: A tropa entra, confronta e sai, deixando o vácuo de poder e o trauma. Não há plano de reconstrução, de reforço de serviços, de justiça social. O crime se reorganiza e o ciclo de violência se reinicia.

4- A Letalidade Injustificável: A pesquisadora Carolina Panis (Brasil de Fato) é clara: prisões "não compensam enorme custo humano". A lógica da guerra criminaliza a segurança pública ao naturalizar a morte, atingindo desproporcionalmente a população pobre, negra e periférica.

Vítimas e o Legado do Trauma: A Voz de Quem Sente a Bala

Imagem de CNN Brasil


"Passamos 48 horas trancados, com medo de bala perdida. Meu filho não foi à escola. O posto de saúde fechou. Para o Estado, somos o campo de batalha, não cidadãos. Depois que o helicóptero vai embora, ficamos com o trauma e a conta.” (Liderança Comunitária do Alemão).

A voz das ONGs como a Redes da Maré e o ITDD ecoa a urgência dos Direitos Humanos. Não é possível aceitar a banalização da morte de cidadãos e agentes de segurança jogados na linha de frente por uma estratégia fracassada. O relato dos moradores revela o verdadeiro impacto: o choque psicológico, a interrupção da vida e a certeza de que a violência não resolveu nada, apenas aprofundou a tragédia.

Devemos Desarmar a Guerra Estrutural

Imagem de O Globo


O Rio de Janeiro precisa virar a página do “Estado-Espetáculo” para adotar o “Estado-Estratégia”. A solução é complexa, exige coragem política e deve focar na accountability e na desmilitarização:

• Rastreio Financeiro e Accountability: Auditoria completa e transparente nos contratos públicos e nas empresas com histórico de ligação a milícias. O combate ao crime deve ser liderado por investigações de lavagem de dinheiro, não por tiroteios.

• Desmilitarização e Controle Civil: Reforma urgente das polícias, com o fim do modelo de policiamento de confronto e o controle civil efetivo, priorizando a investigação de crimes complexos e a valorização do policial como trabalhador.

Ocupação Social e Urbana: Ocupar as áreas com escolas de tempo integral, saneamento, saúde e moradia digna. A guerra se combate com política social de longo prazo, desmantelando a base de recrutamento e a justificativa para a existência do poder paralelo.

• Responsabilização Política: É fundamental responsabilizar os agentes públicos e políticos envolvidos na conivência com o crime. O caminho para desarmar o Rio não está nos morros, mas nos gabinetes e nos escritórios onde o dinheiro da extorsão e da grilagem é lavado.

A megaoperação de outubro de 2025 foi um marco trágico que prova, mais uma vez, que mais violência estatal sem estratégia é a garantia de mais tragédia. É hora de exigir uma mudança de rota.

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Imagem de ND Mais



Fontes Citadas:

• Agência Brasil / EBC e CNN Brasil (cobertura da megaoperação, balanço de mortos e retaliação do CV).
• GENI/UFF e Fundação Heinrich Böll (estudos sobre a expansão das milícias, grilagem de terras e vínculos político-econômicos).
• Brasil de Fato e veículos internacionais (análise crítica da letalidade e militarização da segurança).
• Lideranças Comunitárias e ONGs (Redes da Maré, ITDD) – para o enfoque humano.

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